quarta-feira, 28 de julho de 2010

1. O amor é um sentimento que faz parte da "felicidade democrática", aquela que é acessível a todos nós. É democrática a felicidade que deriva de nos sentirmos pessoas boas, corajosas, ousadas, etc.
A "felicidade aristocrática"deriva de sensações de prazer possíveis apenas para poucos: riqueza material, fama, beleza extraordinária.
Felicidade aristocrática tem a ver com a vaidade e é geradora inevitável de violência em virtude da inveja que a grande maioria sentirá da ínfima minoria.
2. É difícil definir felicidade: podemos, de modo simplificado, dizer que uma pessoa é feliz quando é capaz de usufruir sem grande culpa os momentos de prazer e de aceitar com serenidade as inevitáveis fases de sofrimento.
É impossível nos sentirmos felizes o tempo todo, mas os períodos de felicidade correspondem à sensação de que nada nos falta, de que o tempo poderia parar naquele ponto do filme da vida.

3. Apesar de ser acessível a todos, o fato é que são muito raras as pessoas que são bem sucedidas no amor.
Ou seja, devem existir um bom número de requisitos a serem preenchidos para que um bom encontro aconteça.
Não tem sentido pensar que a felicidade sentimental se dê por acaso; não é bom subestimar as dificuldades que podemos encontrar para chegar ao que pretendemos; as simplificações fazem parte das estratégias de enganar pessoas crédulas.

4. O primeiro passo para a felicidade sentimental consiste em aprendermos a ficar razoavelmente bem sozinhos.
Trata-se de um aprendizado e requer treinamento, já que nossa cultura não nos estimula a isso.
Temos que nos esforçar muito, já que os primeiros dias de solidão podem ser muito sofridos.
Com o passar do tempo aprendemos a nos entreter com nossos pensamentos, com leituras, música, filmes, internet, etc.
Aprendemos a nos aproximar de pessoas novas e até mesmo a comer sozinhos.
Pessoas capazes de ficar bem consigo mesmas são menos ansiosas e podem esperar com mais sabedoria a chegada de amigos e parceiros sentimentais adequados.

5. Temos que aprender a definir com precisão nossos sentimentos.
Nós pensamos por meio das palavras e se as usarmos com mais de um sentido poderemos nos enganar com grande facilidade.
Cito, a seguir, alguns dos conceitos que tenho usado e o sentido que a eles atribuo.
Amor é o sentimento que temos por alguém cuja presença nos provoca a sensação de paz e aconchego.
O aconchego representa a neutralização do vazio, da sensação de desamparo que vivenciamos desde o momento do nascimento.
O aconchego é um "prazer negativo", ou seja, a neutralização de uma dor que existia - nos leva de uma condição negativa para a de neutralidade.
Amizade é o sentimento que temos por alguém cuja presença nos provoca algum aconchego e cuja conversa e modo de ser nos encanta.
Segundo essa definição, a amizade é sentimento mais rico do que o amor, já que a pessoa que nos provoca o aconchego - apesar de que menos intenso e, por isso mesmo, gerador de menor dependência - é muito especial e desperta nossa admiração pelo modo como se comporta moral e intelectualmente.
Sexo é uma agradável sensação de excitação derivada da estimulação das zonas erógenas, de estímulos visuais e mesmo de devaneios envolvendo jogo de sedução e trocas de carícias tácteis.
É evidente que a sexualidade envolve questões muito complexas, que não cabe aqui discutir.
Quero apenas enfatizar que sexo e amor correspondem a fenômenos completamente diferentes, sendo que o amor está relacionado com o "prazer negativo" do aconchego e o sexo é "prazer positivo", já que nos excitamos e nos sentimos bem mesmo quando não estávamos mal; o amor nos leva do negativo para o zero, ao passo que o sexo nos leva do zero para o positivo.
Amor, sexo e amizade podem existir separadamente e também podem coexistir.
A mesma pessoa pode nos provocar aconchego e desejo sexual mesmo sem nos encantar intelectualmente; nesse caso, falamos de amor e de sexo.
Podemos estabelecer um elo de amizade e sexo sem o envolvimento maior do amor.
Podemos vivenciar o sexo em estado puro, assim como o amor - como é o caso do amor que podemos sentir por nossa mãe, que independe de suas peculiaridades intelectuais e não tem nada a ver com o sexo.

6. A escolha amorosa adequada se faz quando o outro nos desperta o amor, a amizade e o interesse sexual. A essa condição tenho chamado de +amor, mais do que amor.
Amigos são escolhidos de modo sofisticado e de acordo com afinidades de caráter, temperamento, interesses e projetos de vida (falo dos poucos amigos íntimos e não dos inúmeros conhecidos que temos).
A escolha amorosa deverá seguir os mesmos critérios, sendo que a escolha depende também de um ingrediente desconhecido e indecifrável - porque escolhemos esse e não aquele parceiro?
Não é raro que no início do processo de intimidade a sexualidade não se manifeste em toda sua intensidade.
Isso não deve ser motivo de preocupação, já que faz parte dos medos que todos temos quando estamos diante de alguém que nos encanta de modo especial.

7. O medo relacionado com o encantamento amoroso é que determina o estado que chamamos de paixão: paixão é amor mais medo!
Temos medo de perder aquela pessoa tão especial e do sofrimento que, nessa condição, teríamos.
Temos medo de nos aproximarmos muito dela e de nos diluirmos e nos perdermos de nós mesmos em virtude de seus encantos.
Temos enorme medo da felicidade, já que em todos nós os momentos extraordinários se associam imediatamente à sensação de que alguma tragédia irá nos alcançar - o que, felizmente, corresponde a uma fobia, ou seja, um medo sem fundamento real.
As fobias existem em função de condicionamentos passados e devem ser enfrentadas de modo respeitoso mas determinado.

8. Para ser feliz no amor é preciso ter coragem e enfrentar o medo que a ele se associa.
Esse é um exemplo da utilidade prática do conhecimento: ao sabermos que o amor - aquele de boa qualidade, que determina a tendência para a fusão e provoca a enorme sensação de felicidade - sempre vem associado ao medo, não nos sentimos fracos e anormais por sentirmos assim.
Ao mesmo tempo, adquirimos os meios para, aos poucos, ir ganhando terreno sobre os medos e agravando a intimidade com aquela pessoa que tanto nos encantou.

9. Quando o medo se atenua, desaparece a paixão. Isso não deve ser entendido como o enfraquecimento ou o fim do sentimento amoroso pleno.
Sobrou "apenas" o amor.
O que acaba é o tormento, o "filme de suspense".
Fica claro que a coragem é requisito básico para a vitória sobre o medo e a realização do encontro amoroso.
O encontro é menos ameaçador quando somos mais independentes e capazes para ficar sozinhos; nossa individualidade mais bem estabelecida nos faz menos disponíveis para a tendência à fusão que é usual no início dos relacionamentos mais intensos.
Quando o medo se atenua costuma aumentar o desejo sexual.
Se o parceiro escolhido for também um amigo não faltarão ingredientes para a perpetuação do encantamento.
Desaparece o medo mas não desaparecerá o encantamento, a menos que a única coisa interessante fosse o "filme de suspense" - e se for esse o caso é melhor que o relacionamento termine aí.
No amor assim constituído, o encantamento só desaparecerá se desaparecer a admiração.

10. A admiração só desaparecerá se houverem abalos graves na confiança ou se tiver havido grave engano na avaliação do parceiro.
É evidente que ao longo de um convívio íntimo com uma pessoa com a qual temos muita afinidade surgirão também diferenças de todo o tipo.
Não existem "almas gêmeas", de modo que nem todos os pontos de vista serão afinados, nem todos os hábitos serão compatíveis, etc.
É o momento em que surge uma certa decepção e dúvidas acerca do acerto da escolha.
É nesse ponto que percebemos que a escolha amorosa se faz tanto com o coração como com a razão: a admiração deriva de uma avaliação racional do outro, ainda que o façamos de modo camuflado porque aprendemos que o amor é uma mágica determinada pelas flechas do Cupido.
A avaliação da importância das diferenças que finalmente se revelaram determinará a evolução, ou não, do relacionamento.
A serenidade na análise de situações dessa natureza só pode acontecer com pessoas portadoras de boa tolerância a frustrações e contrariedades.
Assim, a maturidade emocional que se caracteriza pela capacidade de suportarmos bem as dores da vida é requisito indispensável para a felicidade amorosa.

11. É preciso muita atenção, pois o medo tende a se esconder atrás das dúvidas que derivam das diferenças no modo de ser do outro, do menor desejo sexual inicial e também das eventuais dificuldades práticas derivadas das circunstâncias da vida daqueles que se encontraram e se encantaram.
O medo é sempre presente e se formos mais honestos conosco mesmos saberemos melhor separá-lo de seus disfarces. É por isso que o conhecimento, que determina crescimento e fortalecimento da razão, é tão útil para que possamos avançar até mesmo nas questões emocionais.
A coragem é a força racional que pode se opor e vencer o medo.
Ela cresce com o saber e as convicções e também com a maturidade emocional que nos faz mais competentes para corrermos riscos e eventualmente tolerarmos alguns fracassos.

12. A maturidade moral dos que se amam é indispensável para que se estabeleça a mágica da confiança, indispensável para que tenhamos coragem de enfrentar o medo de sermos traídos ou enganados, o que geraria um dos maiores sofrimentos a que nós humanos estamos sujeitos.
Não podemos confiar a não ser em pessoas honestas, constantes e consistentes.
Assim sendo, este é mais um requisito para que possamos ser felizes no amor.
Temos que possuir esta virtude moral e valorizá-la como indispensável no amado.
Não há como estabelecermos um elo sólido e verdadeiro com um parceiro não confiável a não ser que queiramos viver sobre uma corda bamba.

13. São tantos os requisitos básicos para que o +amor se estabeleça que não espanta que ele seja tão incomum mesmo sendo uma felicidade possível para todos.
Temos que nos desenvolver emocionalmente até atingir a maturidade que nos permita competência para lidar com frustrações.
Temos que avançar moralmente para nos tornarmos confiáveis.
Temos que ganhar conhecimento mais sofisticado e útil sobre o amor para que possamos ter uma razão geradora da coragem necessária para ousarmos nessa aventura.
Temos que ter competência para ficar sozinhos para que possamos desenvolver melhor nossa individualidade e não nos deixarmos seduzir pela tentação da fusão romântica e a excessiva dependência, além de podermos esperar com paciência a chegada de um parceiro adequado.
As virtudes necessárias à felicidade sentimental são todas elas "virtudes democráticas", ou seja, acessíveis a todos e cuja presença em uns não impede que surjam nos outros - é sempre bom lembrar que o mesmo não acontece, por exemplo, com o dinheiro: para que uns tenham bastante é inevitável que muitos outros tenham pouco.
As virtudes democráticas podem existir em todos aqueles que se empenharem no caminho do crescimento interior.
Acontece que elas não são fáceis de serem conquistadas e nem se pode chegar a elas a não ser por meio de uma longa e persistente caminhada.
Não existem atalhos e o trajeto pode demorar anos.
O caminho é, por vezes, penoso mas ainda assim fascinante.
Trata-se de uma densa viagem para dentro de nós mesmos, na direção do auto-conhecimento.

14. Quando estamos prontos, o parceiro adequado acaba se mostrando diante de nossos olhos.
Não precisamos nos esforçar, sair de nossas rotinas de vida e buscar ativamente o encontro amoroso. Tudo irá acontecer quando for chegada a hora e sempre é bom ter paciência, já que esperar com serenidade é uma das condições mais difíceis de vivenciarmos.

15. Se tudo isso lhe pareceu muito racional, lógico e frio, engano seu.
Todos esses passos vão nos acontecendo sob a forma de emoções e vivências que se dão espontaneamente, sendo que as reflexões deverão servir apenas de roteiro para que não nos sintamos tão perdidos.
Desde a adolescência experimentamos vários tipos de relacionamentos e deveremos ir aprendendo a entender tudo o que está nos acontecendo e todas as nossas ações e reações.
Primeiro vivenciamos e depois devemos refletir sobre o que aconteceu.
Assim, não existe real antagonismo entre emoções e razão; uma complementa a outra.
Reflexões adequadas e consistentes determinam avanços emocionais, que permitem reflexões mais sofisticadas, geradoras de avanços emocionais ainda maiores, e assim por diante.
Estabelece-se um círculo virtuoso que deverá criar condições de felicidade sentimental para todos aqueles que se empenharem realmente na rota do crescimento emocional.
A felicidade sentimental é a recompensa acessível a todos os que completarem o ciclo mínimo de evolução emocional.

Flávio Gikovate

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